sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Da Denotação (completo) - (2/2)

Da Denotação – Bertrand Russell

Ensaio em "Lógica e Conhecimento"

Coleção Os Pensadores – 1ª edição

Tradução – Pablo Rubén Mariconda

2ª Parte (2 de 2)


Falta mostrar como todos os enigmas que consideramos são resolvidos pela teoria do início deste artigo.

De acordo com a perspectiva que defendo, uma expressão denotativa é essencialmente parte de uma sentença, e não tem, como muitas palavras simples, qualquer significação por conta própria. Se digo, “Scott foi um homem”, este é enunciado da forma “x foi um homem”, e tem “Scott” como seu sujeito. Mas se digo “o autor de Waverley foi um homem”, este não é um enunciado da forma “x foi um homem” e não tem “o autor de Waverley” como seu sujeito. Abreviando o enunciado formulado ao início deste artigo, podemos por em lugar de “o autor de Waverley foi um homem”, o seguinte: “uma e somente uma entidade escreveu Waverley, e tal entidade foi um homem”. (Esta não é uma interpretação tão literal quanto a realizada anteriormente; mas é mais fácil de ser entendida.) E falando de uma maneira geral, suponha-se que queremos dizer que o autor de Waverley tinha a propriedade “phi”, o que queremos dizer é equivalente a “uma e somente uma entidade escreveu Waverley, e tal entidade tinha a propriedade ‘phi’”.

A explicação da denotação é, pois, como segue. Cada proposição na qual “o autor de Waverley” ocorre, sendo explicada acima, a proposição “Scott foi o autor de Waverley” (isto é, “Scott foi idêntico ao autor de Waverley”) torna-se “uma e somente uma entidade escreveu Waverley, e Scott foi idêntico a essa entidade”; ou, transformando para a forma totalmente explícita: “não é sempre falso para x que x escreveu Waverley, que é sempre verdade para y que se y escreveu Waverley, y é idêntico a x, e que Scott é idêntico a x”. Assim, se “C é uma expressão denotativa, pode acontecer que exista uma entidade x (não pode existir mais de uma) para a qual proposição “x é idêntico a C” seja verdadeira, sendo esta proposição interpretada como acima. Podemos, então, dizer que a entidade x é a denotação da expressão “C”. Desta forma, Scott é a denotação de “o autor de Waverley”. O “C” entre aspas será simplesmente a expressão, e não alguma coisa que possa ser chamada o significado. A expressão per se não tem significado, porque em qualquer proposição na qual ela ocorre, a proposição, inteiramente expressa, não contém a expressão, que foi desmembrada.

O enigma acerca da curiosidade de George IV é agora visto possuir uma solução muito simples. A proposição “Scott foi autor de Waverley”, que foi escrita por extenso em sua forma sem abreviaturas no parágrafo precedente, não contém nenhum “o autor de Waverley” como constituinte, que poderia ser substituído por “Scott”. Isto não interfere na verdade das inferências que resultam de fazer o que verbalmente é a substituição de “o autor de Waverley” por “Scott” enquanto “o autor de Waverley” tenha o que chamo de uma ocorrência primária na proposição considerada. A diferença entre ocorrências primárias e secundárias de expressões denotativas é a que segue:

Quando dizemos: “George IV desejava saber se fulano de tal”, ou quando dizemos “fulano de tal está surpreso” ou “fulano de tal é verdadeiro”, etc., o “fulano de tal” deve ser uma proposição. Suponha-se agora que “fulano de tal” contenha uma expressão denotativa. Podemos ou eliminar essa expressão denotativa da proposição subordinada “fulano de tal” ou da totalidade da expressão na qual “fulano de tal” é um mero constituinte. Diferentes proposições resultam de acordo com a qual das duas fazemos. Ouvi de um suscetível proprietário de um iate, a quem uma visita, vendo o iate pela primeira vez, observou “eu pensei que seu iate fosse maior do que ele é”; ao que o proprietário respondeu, “não, meu iate não é maior do que ele é”. O que a visita queria dizer era, “o tamanho que eu pensei que seu iate tivesse é maior do que o tamanho que seu iate tem”; o significado atribuído é, “eu pensei que o tamanho de seu iate fosse maior do que o tamanho de seu iate”. Voltando a George IV e Waverley, quando dizemos “George IV desejava saber se Scott era o autor de Waverley”, normalmente queremos dizer “George IV desejava saber se um e somente um homem escreveu Waverley, e George IV desejava saber se Scott era esse homem”. Na última proposição, “o autor de Waverley” tem uma ocorrência primária; na primeira proposição, uma ocorrência secundária. A última proposição poderia ser expressa por “George IV desejava saber, com respeito ao homem que de fato escreveu Waverley, se ele era Scott”. Isto seria verdade, por exemplo, se George IV tivesse visto Scott a distância, e tivesse perguntado “aquele é Scott?”. Uma ocorrência secundária de uma expressão denotativa pode ser definida como uma ocorrência na qual a expressão ocorre na proposição p que é um simples constituinte da proposição que estamos considerando, e a substituição da expressão denotativa deve ser efetuada em p, não na totalidade da proposição considerada. A ambiguidade entre as ocorrências primárias e secundárias é difícil de ser evitada na linguagem; mas ela não produz dano se estamos atentos a ela. Obviamente, na lógica simbólica ela é facilmente evitada.

A distinção entre as ocorrências primárias e as secundárias também nos capacita a lidar com a questão de se o atual rei da França é careca ou não é careca, e de uma maneira geral com o status lógico de expressões denotativas que não se denotam nada. Se “C” é uma expressão denotativa, digamos “o termo que possui a propriedade F”, então

C tem a propriedade phi” significa “um e somente um termo tem a propriedade F, e esse termo tem a propriedade phi”. (Essa é a interpretação abreviada e não a mais rigorosa.)

Se, entretanto, a propriedade F, não pertence a termo algum, ou a vários termos, segue-se que “C tem a propriedade phi” é falsa para todos os valores de phi. Assim, o atual rei da França é careca” é certamente falsa; e o “atual rei da França não é careca” é falsa se significa “existe uma entidade que é agora rei da França e não é careca”, mas é verdadeira se significa “é falso que existe uma entidade que é agora rei da França e é careca”.

Isto é, “o rei da França não é careca” é falsa se a ocorrência de “o rei da França” é primária, e verdadeira se a ocorrência é secundária. Assim, todas as proposições nas quais “o rei da França” tem uma ocorrência primária são falsas; as negativas de tais proposições são verdadeiras, mas estas “o rei da França” tem uma ocorrência secundária. Assim, escapamos à conclusão de que o rei da França tem uma peruca.

Podemos agora ver, também, como negar que exista um objeto tal como a diferença entre A e B no caso em que A e B não diferem. Se A e B diferem, existe uma e somente uma entidade x tal que “x é a diferença entre A e B” é uma proposição verdadeira; se A e B não diferem, não existe tal entidade x. Desta forma, de acordo com o significado da denotação explicado por último, “a diferença entre A e B” tem uma denotação quando A e B diferem, mas não possui denotação de outro modo. Esta diferença aplica-se geralmente a proposições verdadeiras e falsa. Se “aRb” representa “a tem relação R com b”, então quando aRb é falsa, não existe tal entidade. Assim, fora de qualquer proposição, podemos fazer uma expressão denotativa, que denota uma entidade se a proposição é falsa. Por exemplo, é verdade (pelo menos assim suporemos) que a Terra gira ao redor do Sol, e falso que o Sol gira ao redor da Terra; portanto, “a revolução da Terra ao redor do Sol” denota uma entidade, enquanto “a revolução do Sol ao redor da Terra” não denota uma entidade. [[As proposições das quais tais entidades são derivadas não são idênticas seja a essas entidades, seja às proposições que essas entidades têm sido.]]

Todo o domínio de não-entidades, tais como “o quadrado redondo”, “o número primo par diferente de 2”, “Apolo”, “Hamlet”, etc., pode ser agora satisfatoriamente resolvido. Todas estas expressões são expressões denotativas, que não denotam nada. Uma proposição acerca de Apolo significa o que obtemos pela substituição daquilo que os dicionários clássicos nos dizem significar Apolo, a saber, “o deus do sol”. Todas as proposições em que Apolo ocorre devem ser interpretadas através das regras acima para expressões denotativas. Se “Apolo” tem uma ocorrência primária, a proposição contendo a ocorrência é falsa; se a ocorrência é secundária, a proposição pode ser verdadeira. Desta forma, novamente “o quadrado redondo é redondo” significa “existe uma e somente uma entidade x que é redonda e quadrada, e essa entidade é redonda”, que é uma proposição falsa; não uma proposição verdadeira, como sustenta Meinong. “O mais perfeito Ser tem todas as perfeições; a existência é uma perfeição; logo o mais perfeito Ser existe”, torna-se:

“Existe uma e somente uma entidade x que é mais perfeita; essa entidade tem todas as perfeições; a existência é uma perfeição; logo essa entidade existe”. Como prova, esta prova falha por falta de prova da premissa “existe uma e somente uma entidade x que é mais perfeita”. [[Pode-se fazer o argumento para provar de modo válido que todos os membros da classe dos mais perfeitos seres existem; pode-se provar também formalmente que essa classe não pode ter mais do que um membro; porém, tomando a definição de perfeição como posse de todos os predicados positivos, pode-se provar de modo formal aproximadamente da mesma maneira que a classe não pode ter mesmo um membro.]]

O Sr. MacColl (Mind, N. S., n.º 54, p.401) considera os indivíduos como sendo de duas espécies, real e irreal; daí, ele define a classe vazia como a classe que consiste de todos os indivíduos irreais. Isto supõe que expressões tais como “o atual rei da França”, que não denotam um indivíduo real, denotam entretanto um indivíduo, mas um indivíduo irreal. Esta é essencialmente a teoria de Meinong, que tivemos razão para rejeitá-la, porque ela entra em conflito com a lei de contradição. Com nossa teoria da denotação, somos capazes de sustentar que não existem indivíduos irreais; de tal forma que a classe vazia é a classe que não contém membros e não a classe que contém como membros todos os indivíduos irreais.

É importante observar o efeito de nossa interpretação de definições que procedem através de expressões denotativas. Muitas definições matemáticas são dessa espécie; por exemplo, “m-n significa o número que, adicionado a n, resulta m”. Assim, m-n é definido como significando o mesmo que uma certa expressão denotativa; mas concordamos que expressões denotativas isoladas não têm significado. Assim, a definição deveria realmente ser: “qualquer proposição contendo m-n deve significar a proposição que resulta da substituição de ‘o número que, adicionado a n, resulta m’ por ‘m-n’.” A proposição resultante é interpretada de acordo com as regras já dadas para a interpretação de proposições cuja expressão verbal contenha uma expressão denotativas. No caso em que m e n são tais que existe um e somente um número x que, adicionado a n, resulta m, existe um número x que pode substituir m-n em qualquer proposição contendo m-n, sem alteração da verdade ou falsidade da proposição. Mas, em outros casos, todas as proposições, em que “m-n” tem uma ocorrência primária, são falsas.

A utilidade da identidade é explicada pela teoria acima. Ninguém, fora de um texto de lógica, jamais desejou dizer “x é x”, e entretanto asserções de identidade são frequentemente deitas em formas tais como “Scott foi o autor de Waverley” ou “tu és um homem”. O significado de tais proposições não pode ser formulado sem a noção de identidade, apesar de não serem simplesmente enunciados de que Scott é idêntico a um outro termo, a saber, o autor de Waverley, ou que tu és idêntico a um outro termo, a saber, o homem. O menor enunciado de “Scott é o autor de Waverley” parece ser “Scott escreveu Waverley; e é sempre verdadeiro para y que se y escreveu Waverley, y é idêntico a Scott”. É deste modo que a identidade entra em “Scott é o autor de Waverley”; e é possuindo tais usos que a identidade é importante de ser afirmada.

Um resultado importante da teoria da denotação exposta acima é o seguinte: quando existe qualquer coisa da qual não temos conhecimento de trato imediato, mas somente definição através de expressões denotativas, então as proposições, nas quais essa coisa é introduzida por meio de uma expressão denotativa, não contém realmente essa coisa como um constituinte, mas contém, ao contrário, os constituintes expressos por várias palavras da expressão denotativa. Desta forma, em toda proposição que podemos apreender (isto é, não somente naquelas cuja verdade ou falsidade podemos julgar, mas em todas que podemos pensar), todos os constituintes são realmente entidades das quais temos conhecimento de trato imediato. Ora, coisas tais como a matéria (no sentido em que a matéria ocorre na física) e as mentes de outras pessoas são conhecidas por nós somente através de expressões denotativas, isto é, não temos conhecimento de trato delas, mas as conhecemos como sendo aquilo que tem mais tais ou quais propriedades. Portanto, apesar de podermos formar funções proposicionais C(x), que devem conter tal ou qual partícula material, ou a mente de fulano de tal, ainda assim, não temos conhecimento de trato das proposições que afirmam essas coisas, que sabemos que devem ser verdadeiras, porque não podemos apreender as entidades reais concernidas. O que sabemos é “fulano de tal tem uma mente que possui tais ou quais propriedades”, mas não sabemos que “A tem tais ou quais propriedades”, onde A é a mente em questão. Em tal caso, sabemos as propriedades de uma coisa sem ter conhecimento de trato da coisa em si, e, consequentemente, sem saber qualquer proposição simples, da qual a coisa em si seja um constituinte.

Das muitas outras consequentes da perspectiva que estive defendendo, não direi nada. Somente pedirei ao leitor para não se precaver contra a perspectiva – como poderia estar tentando fazer, devido aparentemente à sua excessiva complicação –, até que tenha tentado construir uma teoria própria sobre o assunto da denotação. Essa tentativa, acredito, o convencerá de que, qualquer que possa ser a teoria verdadeira, ela não pode ter a simplicidade esperada de antemão.

Um comentário:

  1. Muito obrigado por compartilhar esse texto maravilhoso, ele foi de grande ajuda.

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